quinta-feira, novembro 14, 2024

Padre: “Grupos que querem dividir a Igreja são fumaça satânica”

Há quase 60 anos, a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) promove a Campanha da Fraternidade em todo o País. Recentemente, porém, se tornou alvo de críticas por grupos de cristãos ultraconservadores por conta do tema escolhido este ano, o combate à fome.

 

Eles têm acusado a CNBB de tentar promover uma doutrina comunista, além de acusarem bispos de utilizarem dados falsos sobre a fome no país.

 

Para o padre Deusdédit de Almeida, que administra a Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus, em Cuiabá, são organizações que tentam dividir os católicos e afastá-los das palavras de Deus.

 

Ele explica que a campanha é de âmbito nacional, e busca unir os católicos em torno de uma emergência humanitária. As doações são convertidas em alimentos entre os mais necessitados.

  

“Desde o início do projeto, nunca houve essas resistências. Sempre houve coesão nos temas. Mas dos últimos anos para cá, surgiram grupos assim. Eu classifico como fumaça satânica. Grupos que querem dividir a Igreja são fumaça satânica. Satanás, na bíblia, é aquele que se opõe, aquele que divide”, disse.

 

Em entrevista ao MidiaNewsDeusdédit ainda fala sobre o período da quaresma, a fila dos ossinhos em Mato Grosso e a fome entre outros assuntos.

 

Leia abaixo a entrevista na íntegra.

 

MidiaNews – Com o fim do Carnaval, entramos nesta semana na Quaresma. Como um cristão deve se comportar neste período, tanto no campo espiritual quanto material?

 

Padre Deusdédit – Espiritualmente, a Quaresma é tempo de reavivamento da fé, de escuta da palavra de Deus com mais frequência, mais assiduidade, mais cuidado. A gente descuida muito de estar meditando a palavra. A lectio divina, que a gente chama de leitura orante da bíblia, é um exercício de espiritualidade cristã muito recomendado pela Igreja, sobretudo na Quaresma. 

 

A Quaresma é para construir pontes de amizade, de comunhão com todas as pessoas. Isso é fundamental na vida

O segundo passo seria o momento de reconciliação com as pessoas. Isso é importante. A Quaresma é para construir pontes de amizade, de comunhão com todas as pessoas. Isso é fundamental na vida. Nós temos que ter essa experiência porque dependemos uns dos outros. Nós precisamos crescer na fraternidade, na tolerância, no trato com as pessoas, no carinho com as pessoas, na misericórdia com as pessoas. 

 

O cristianismo é a religião do perdão. É a única religião que sempre prega que a gente tem que dar a outra face, perdoar, rezar pelos inimigos. Jesus mesmo veio ensinar isso. No judaísmo, por exemplo, é dente por dente, olho por olho. Bateu, levou. Já o Nosso Senhor veio falar que nós devemos dar a outra face, que é uma metáfora de que nunca devemos revidar com violência outro ato de violência. Nunca responder com agressividade a agressividade dos outros. Porque ódio chama ódio, violência chama violência, guerra chama guerra e hostilidade chama hostilidade.

 

MidiaNews – A Campanha da Fraternidade deste ano tem como ponto central o combate à fome. Qual a importância desta campanha em um estado onde pessoas fazem fila para conseguir ossos?

 

Padre Deusdédit – Dentro da Quaresma, a gente também promove a Campanha da Fraternidade. Essa campanha visa convocar as pessoas para o exercício da fraternidade em torno de algum tema emergencial humanitário. Este ano o tema é: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. É um tema bíblico extraído do evangelho de Mateus. Como Jesus disse: “Não precisa mandar o povo embora. Dai-lhes vós mesmos de comer”.

  

Devemos lembrar que a questão da fome hoje também é estrutural. Existem mais de 33 milhões de brasileiros que não estão participando do banquete da vida. Vivendo em segurança alimentar. Por que em um país onde se produz tantos alimentos, o povo está nessa situação? Nós vamos fazer nosso trabalho de socorro imediato, ajudar, mas sempre lembrar que depende principalmente de políticas públicas sobre a educação, a saúde, o aumento do salário mínimo.

O cristianismo é a religião do perdão. É a única religião que sempre prega que a gente tem que dar a outra face, perdoar

 

Como é que a pessoa vai sobreviver com esse salário, sendo que tem que pagar aluguel, energia, água… não vai sobrar para comida. Então, nosso poder de compra caiu muito, e é preciso melhorar. A caridade tem três dimensões: a primeira é a social. Dar comida, socorro imediato àquela pessoa que está passando fome, porque quem tem fome, tem pressa. Existe a dimensão promocional da caridade, que é: ao invés de dar o peixe, ensinar a pescar. 

  

Nós vimos a tragédia das enchentes, que todo ano tem. Quem são as pessoas que mais sofrem com essas tragédias? Os pobres. São vítimas sempre. Esses desastres são cada vez mais frequentes, então é preciso de intenverção através das políticas públicas. A Campanha da Fraternidade é uma ação da Igreja, mas para toda a sociedade também. 

 

MidiaNews – Há um levantamento de quantas pessoas são auxiliadas com as ações da Igreja?

 

Padre Deusdédit – Em Cuiabá, juntando todas as paróquias, todos os grupos, em torno de mil famílias são assistidas sistematicamente pelos Vicentinos, Legião de Maria e pelas equipes de caridade. Aqui na Catedral, temos em torno de 60 famílias que são atendidas. Mensalmente, eles vêm aqui buscar a cesta básica. 

 

Se você multiplicar isso pelas paróquias, têm paróquias que têm mais de 200 famílias. Eu vim de uma paróquia Coração de Maria, no Bairro Dr. Fábio, também tinha muitas famílias. E com essa campanha, vamos potencializar o trabalho e envolver mais voluntários.

 

MidiaNews – Um grupo de cristãos ultraconservadores tem criticado o tema da campanha deste ano. Eles acusam a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) de tentar implementar a “Teologia da Libertação” e de usar dados falsos sobre a fome no país, além de tentarem convencer os fiéis a não doarem para a campanha. Qual a opinião do senhor sobre isso? Qual conselho daria aos cristãos que podem estar confusos com essas alegações?

 

Existem mais de 33 milhões de brasileiros que não estão participando do banquete da vida. Vivendo em segurança alimentar

Padre Deusdédit – Primeiro: a CNBB não trabalha com dados falsos. Nós sempre buscamos fontes, como o IBGE, e estudos com dados oficiais. A gente pode ver que é real pela questão dos yanomamis, que a TV Globo fez ampla cobertura. Não trabalhamos com dados artificiais, dados fantasiosos. Tem pessoas que não gostam porque envergonha. Realmente, a fome é uma vergonha, mas se nós enfrentarmos, nós vamos superar.

 

Segunda coisa: desde o início do projeto, nunca houve essas resistências. Sempre houve coesão nos temas. Mas dos últimos anos para cá, surgiram grupos assim. São Paulo VI disse uma vez: “Fumaça de satanás na Igreja”. Então, eu classifico como fumaça satânica. Grupos que querem dividir a Igreja são fumaça satânica. Satanás, na bíblia, é aquele que se opõe, aquele que divide.

 

Será que essas pessoas são mais católicas que o Papa? Que os mais de 300 bispos? Para dizer o que é certo e errado e induzir os católicos? Essa é uma reflexão que eu deixo. É necessário dizer que a Campanha da Fraternidade está sempre centrada na palavra de Deus. Você pode colocar o que não concorda, o que precisa melhorar, mas desmontar todo um projeto por causa de ideologia, não. Vamos corrigir, melhorar. Tudo que fazemos tem imperfeições, mas a gente vai aperfeiçoando à medida que fazemos.

 

O evangelho tem uma dimensão sócio-política, então é por isso que esses grupos não aceitam. São grupos fechados, que acham que temas humanitários, emergentes, que estão à parte da Igreja, não deveriam ser contemplados, mas são temas sociais que Jesus levantou na época e precisamos manter presentes hoje. Quem não concorda com a campanha, então não atrapalhe quem quer trabalhar. 

 

MidiaNews – O Brasil é campeão mundial de produção de alimentos e Mato Grosso é o maior produtor nacional. Por que então a fome ainda persiste por aqui?

 

Grupos que querem dividir a Igreja são fumaça satânica. Satanás, na bíblia, é aquele que se opõe, aquele que divide

Padre Deusdédit – A causa é estrutural. Há má distribuição de renda, desigualdade, abandono da questão fundiária. Nós precisamos de uma reforma agrária ampla e justa para quem tem vocação para ficar na terra. Grande parte da alimentação que vai para a mesa dos brasileiros vem da agricultura familiar. Então, por que não investir mais?

 

Sem, claro, desmerecer o agronegócio, que é importante, gera divisas, empregos, traz dólar para o país. Tudo isso é importante, mas não podemos ficar só de um lado. Não podemos só priorizar o mercado externo, as commodities, o lucro. O sistema agrícola não tem que estar só servindo o sistema financeiro. Então, a gente vê uma profunda desigualdade.

 

A questão da fome tem uma causa estrutural e é preciso a gente ver as causas geradoras disso.  Agora existe essa designação de que pessoas que lutam pelos pobres são socialistas. Não. Nós queremos que todas as pessoas tenham sua propriedade privada. 

 

MidiaNews – Acha que falta interesse dos políticos em olhar mais para esse lado social?

 

Padre Deusdédit – Também. Não podem só atender pessoas que têm poder aquisitivo alto. Eu sempre costumo dizer nas minhas palestras que quem mais precisa da administração pública municipal, estadual e federal são os mais pobres. Porque eles são necessitados, dependem do poder público. Diferente de uma pessoa da classe A, que tem saúde, imóveis, renda, não tem crise quase. Então, o poder público tem que estar voltado para essa parcela da sociedade que mais precisa do Estado, e é onde ele está ausente.

 

MidiaNews – Acha que o agronegócio mato-grossense deveria dar uma contribuição na redução da fome no Estado?

 

Padre Deusdédit – Ele sempre contribuiu produzindo alimento. Eu não quero dizer que sou contra, pelo contrário, produz soja, arroz, feijão, que ficam aqui. Deveriam ter também alimentos mais baratos, considerando que somos o celeiro do mundo. Claro que todo trabalho tem sua margem de lucro, mas é possível ter lucro e também atender a demanda do mercado interno, não somente o mercado externo.

 

O evangelho tem uma dimensão sócio-política, então é por isso que esses grupos não aceitam

Você viu aqui em Cuiabá a fila dos ossinhos. E quantas toneladas de carne são exportadas? Nós temos que rever essas questões. Mato Grosso é um Estado que está economicamente bem por conta do agronegócio, mas ainda sinto que é um modelo extremamente concentrador de renda. Nós precisamos que a renda seja melhor distribuída através das políticas públicas.

 

MidiaNews – Nesta semana, tivemos um crime bárbaro em Mato Grosso. Dois homens mataram sete pessoas em um bar. Como um religioso como o senhor, que prega a bondade, vê uma chacina como essa?

 

Padre Deusdédit – Em primeiro lugar é um ato criminoso. Qualquer pessoa que atira contra seu irmão, não se justifica. A violência não se justifica em hipótese alguma. Nós tivemos na bíblia a história de Caim e Abel, o primeiro homicídio, que ofendeu a Deus.

 

Segundo lugar, o ambiente em que estavam, como estavam essas pessoas? Dominadas pelo álcool? Geralmente, esses bares são regados a bebida, então não sei como estavam as condições emocional, psíquica e física. O que não justifica também, mas é preciso coibir essas questões do álcool, porque todo fim de semana acontecem tragédias por conta de bebedeira.

 

Em terceiro lugar, é importante ver a questão da vingança… Havia um ódio ali. É preciso que as pessoas tirem do coração esse sentimento de vingança, de ódio, de raiva. Nós vivemos numa sociedade efervescente, as pessoas estão muito sensíveis, qualquer coisa é disputada pela violência. Então, é um momento de reflexão, para gente trabalhar pela fraternidade, tentar construir uma civilização do amor, porque ele triunfa em todos os ambientes. Também tem a questão das armas, que está voltando de novo. Eu, pessoalmente, sou contra. 

  

São grupos fechados, que acham que temas humanitários, emergentes, que estão à parte da Igreja, não deveriam ser contemplados

Nós temos que construir a cultura da paz nesse país, do amor. Um país com a civilização do amor, das relações saudáveis, fraternas, sem violência. Temos que desarmar os corações, as mentes, os espíritos para construirmos o amor fraterno entre as pessoas. E tirar lições dessas chacinas. Não aumentar o ódio, e rezar pelas pessoas dos dois lados. As vítimas e os agressores.

 

MidiaNews –  O que há no coração de pessoas que são capazes de fazer maldade tão grande?

 

Padre Deusdédit – O ser humano é um ser imprevisível. Age na emoção, pessoas imaturas são muito repentinas para tomar decisão e, sobretudo, é preciso ver se eles não estavam dominados pelo álcool. Normalmente, pessoas alcoolizadas ou sob efeito de drogas agem dessa forma e depois se arrependem. O ser humano precisa desarmar seu sentimento de ódio, rancor, violência. O ódio é que está destruindo a humanidade.

 

Essa guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o ódio está cada vez mais aumentando entre aqueles povos. Quando isso será curado? Não se sabe. Porque pode passar até 100 anos, eles vão lembrar com ódio do outro povo. Então, nós temos que acabar com o mal. O ódio chama o ódio, violência chama violência e guerra chama guerra.

  

MidiaNews –  Entre as vítimas, estava uma adolescente de 12 anos. A mãe dela, que estava no bar junto, a viu morrer, além do marido. Qual conselho daria para essa mãe, que teve a família destruída?

 

Padre Deusdédit – Sempre é difícil. É uma ferida que fica aberta e demora a cicatrizar. Em primeiro lugar, ela precisa de ajuda psicológica. Tem que passar por uma avaliação, ter pessoas ao seu lado, para ela assimilar essa perda que aconteceu de maneira tão cruel e agressiva. Tentar também uma busca espiritual. Perdoar. Porque se a pessoa não perdoa, vai carregando um sentimento dentro de si.

 

Mato Grosso é um Estado que está economicamente bem por conta do agronegócio, mas ainda sinto que é um modelo extremamente concentrador de renda

Parafraseando William Shakespeare: a pessoa que odeia o outro, é como se, todo dia, tomasse uma colherada de veneno achando que aquilo vai destruir o inimigo, mas envenena a si mesmo. O ódio é assim. Então, está prejudicando a própria vida. Por isso, a solução é trabalhar essa mãe na linha do perdão, para ela poder tirar esse sentimento do coração. Então, é preciso rezar sempre.

 

MidiaNews –  O senhor está agora na Catedral de Cuiabá. Como está a estrutura da igreja? Está precisando de alguma reforma?

 

Padre Deusdédit – Agora, estamos com o projeto da reforma elétrica, que nunca foi feita. A Catedral foi inaugurada em 1973, já vai fazer 50 anos. Nós fizemos um projeto, mandamos para o Estado e estamos esperando ajuda. Mas também temos ajuda da comunidade. A Igreja Senhor dos Passos também está em reforma, com ajuda da Secretaria de Cultura, porque lá é tombado como patrimônio histórico. Então, está em reforma agora da igrejinha.

 

Todos os templos nossos necessitam de manutenção. Aqui, temos um pedreiro permanente que sempre está fazendo manutenção para não deixar deteriorar principalmente os telhados. Porque através das goteiras é que começam as infiltrações. A gente sempre tem um cuidado muito especial com a manutenção. Agora, o projeto maior, da reforma elétrica, a gente quer ver se consegue.

 

MidiaNews –  Que mensagem gostaria de deixar para os fiéis nesta Quaresma?

 

Padre Deusdédit – A Quaresma é tempo de purificação da nossa vida, de reconciliação com as pessoas, de perdoar as pessoas e de preparar a Páscoa de maneira santa. Então, vamos aproveitar a Quaresma para esse reavivamento da vida espiritual, da nossa vida com Deus, da nossa relação com Ele e da nossa relação com as pessoas.

 

Fazer as pazes com Deus e com nossos irmãos. Isso é tudo. E a Quaresma nos favorece a isso: tempo de graça, tempo de conversão, de reconciliação. Na bíblia, os profetas sempre falam da conversão nessas duas dimensões: estar de bem com Deus e estar de bem com as pessoas.

 



FONTE: Midia News

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