O caso de suicídio do policial militar Gabriel Castella nesta semana, em São José do Rio Claro, acendeu o alerta para a atenção que a corporação e os profissionais devem ter com a saúde mental.
Castella se matou após ter assassinado o colega de farda William Ferreira Nascimento, durante uma discussão sobre o trabalho. No mesmo dia, o investigador da Polícia Civil Anderson Lauro Ferreira, de 46 anos, foi encontrado morto com disparo de arma de fogo, dentro na Delegacia de Lucas do Rio Verde.
Para a psicóloga Luana Estela de Arruda, que atende policiais militares de Mato Grosso, é necessária atenção especial à saúde mental na corporação. Também é importante, diz, ser célere na busca por ajuda profissional.

Militares buscam ajuda quando já passaram do limite. Cheio de tabus, de dificuldade de buscar e aceitar que é necessária a ajuda psicológica
“Militares buscam ajuda quando já passaram do limite. Cheio de tabus, de dificuldade de buscar e aceitar que é necessária a ajuda psicológica. […] Eles me procuram quando a ansiedade já avançou para crises, até mesmo o transtorno de pânico”, disse ela em entrevista ao MidiaNews.
A profissional atende a categoria por meio da Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar e Corpo de Bombeiros Militar (ACS-MT).
Ela ainda falou da importância do autoconhecimento e de auxílio psiquiátrico e psicológico em momentos delicados.
Confira os principais trechos da entrevista:
MidiaNews – Casos como o de semana passada, em que um PM matou um colega e depois se matou, trazem luz a necessidade de procurar um profissional?
Luana de Arruda – Com certeza. E tem essa questão da empatia, que é quando você percebe com um colega seu não está bem. Nós temos problemas individuais, mas quando você tem a oportunidade de perceber que seu colega não está bem e poder orientá-lo a buscar ajuda é extremamente importante. E é preciso saber que não é fácil a vida que eles escolheram, mas é necessário olhar para si mesmo e identificar que há um problema e buscar ajuda.
Eu já recebi paciente que me disse: “É muito difícil eu estar aqui, porque eu tinha preconceito”. E a gente foi desconstruindo isso, mostrando o que é o trabalho em terapia, e creio que aí há um ganho tão grande quando você desconstrói isso.
MidiaNews – A incidência de suicídio é maior dentro das polícias em relação a sociedade como um todo. Que medidas as instituições poderiam adotar para minimizar esses casos?

Quando se fala em suicídio, fala-se de uma pessoa totalmente vulnerável, que está com a saúde mental prejudicada e que não encontra uma saída
Luana de Arruda – A gente teve o setembro amarelo, que é para conscientização do suicídio, mas isso deveria ocorrer o ano todo. As principais medidas para minimizar os casos, para mim, é a prevenção. Por meio de informativos, palestras, redes sociais, e buscar falar mais sobre o assunto.
Quando se fala em suicídio, fala-se de uma pessoa totalmente vulnerável, que está com a saúde mental prejudicada e que não encontra uma saída. E isso, chega a esse ponto devido ao cargo, é um acúmulo. Não é uma decisão de uma hora para outra.
MidiaNews – Acúmulo de dores da vida particular e da militar?
Luana de Arruda – Exatamente. Quando não consegue mais fazer a separação do pessoal e profissional. Às vezes, têm-se uma questão em casa que acaba potencializando no trabalho, porque essa pessoa está vulnerável. Um pequeno acontecimento é potencializado.
Mas é preciso conscientizar e falar mais sobre o assunto. Porque quando as pessoas começam a apresentar sinais, a tratar o suicídio como possibilidade, é porque elas estão pedindo ajuda. E é nesse momento que as pessoas que estão ao redor devem acolhe-lo e o direcionar aos profissionais.
MidiaNews – Quantos policiais militares por mês a senhora atende?
Luana de Arruda – Hoje, acompanho 15 policiais com atendimento toda semana, que dá em média 60 atendimentos por mês.
MidiaNews – E são policiais associados à Associação de Cabos e Soldados da Polícia Militar e Bombeiro Militar?
Luana de Arruda – Sim. Militares que buscam ajuda quando já passaram do limite. Cheio de tabus, de dificuldade de buscar e aceitar que é necessário a ajuda psicológica. A maioria dos que me procuram são policiais que atuam na rua.
MidiaNews – E os casos de depressão são a maioria nesses atendimentos?
Luana de Arruda – A maioria é depressão e ansiedade. Eles me procuram quando a ansiedade já avançou para crises, até mesmo o transtorno de pânico.
MidiaNews – E como isso se manifesta nesses profissionais?

Separar o trabalho da vida pessoal é muito difícil. Aí, acaba indo para o trabalho algumas situações vivenciadas e causa conflitos, estresse
Luana de Arruda – Geralmente é pelo acúmulo de questões pessoais, conjugais, que acaba afetando o ambiente de trabalho. Separar o trabalho da vida pessoal é muito difícil. Aí, acaba indo para o trabalho algumas situações vivenciadas e causa conflitos, estresse.
O trabalho em si já é difícil, como lidar diariamente com questões que precisam de comprometimento com a sociedade. Isso gera um estresse que não percebe-se de cara.
MidiaNews – E qual a principal queixa deles?
Luana de Arruda – De não conseguir lidar com situações corriqueiras, seja em casa ou no trabalho. Eles começam a perceber que alguma coisa não está dando certo, começam a evitar lugares, apresentam desanimo, até mesmo pelo trabalho.
Ao longo do processo terapêutico, vão entendendo que tem questões e crenças enraizadas, traumas.
MidiaNews – Que crenças?
Luana de Arruda – Geralmente, são relacionadas a criação. Têm policiais que vêm de famílias de militares e acabam optando pela profissão por sentir orgulho do pai ou mãe. E aí, quando se vê, começa a apresentar algumas limitações, uma dificuldade de interação, uma dificuldade de relacionar com pessoas.
Por vezes, são vistos como uma pessoa fria, grossa e isso acaba gerando um bloqueio ou dificuldade de relação. Há ainda a questão deles receberem ordem. E quando sentem que estão sendo perseguidos pelo superior, acabam não conseguindo lidar. E buscar ajuda já é um grande passo.
Eles têm uma disciplina muito rígida, acabam se perdendo em relação ao que é o autoritarismo e o que é o ego da função. É preciso entender que, mesmo exercendo uma autoridade, é preciso ter empatia, sensibilidade com os demais. Porque a exigência em demasia, pode gerar frustrações.
MidiaNews
Especialista: policiais nas ruas tem medo por conta da família
MidiaNews – Esses militares relatam algum temor em estar nas ruas, poder ser ferido, poder ser morto?
Luana de Arruda – Sim. Eles trazem esse medo por conta da família. “Como ficaria a minha família sem mim?”. A maioria tem uma família constituída, então há esse receio, porém, como um todo, eles têm um orgulho de estar dentro da Polícia Militar.
Eles sabem do risco, até por conta dos treinamentos, mas que o importante é poder fazer um bom trabalho e sempre torcer para poder voltar para casa.
MidiaNews – Acredita que essa grande exigência dos militares com alta patente para com os de menor patente pode ser repensada dentro da instituição?
Luana de Arruda – Acredito que sim. Na maioria das empresas privadas, quando percebe-se que o colaborador não está bem da saúde mental, não está produzindo como deveria, elaboram algo que possa ajudá-lo. Na instituição isso pode ser replicado.
É necessário orientar esse profissional a buscar ajuda, ouvi-lo, ter mais a sensibilidade.
E eu acredito que, cada vez mais, o tabu da saúde mental está sendo desconstruído. A maioria dos associados que atendo, são encaminhados a buscar a avaliação psiquiátrica.
MidiaNews – Quando diagnostica um caso de depressão, que medida toma?
Luana de Arruda – Encaminho para o médico, e seguimos com a terapia semanal para que o paciente possa falar, verbalizar aquilo que está sentindo e buscarmos um direcionamento importante para poder seguir a vida.
A associação tem uma parceria com médico psiquiatra e eu faço essa orientação de buscar o médico. Se percebo que o paciente não têm condições de buscar ajuda sozinho, a gente entra em contato com um familiar.
Ou seja, acabamos saindo do compromisso da confidencialidade no processo de terapia quando percebo que o paciente não consegue lidar com as frustrações e não consegue tomar uma atitude que seja positiva para ele.
MidiaNews – Por vezes, esses policiais necessitam ser afastados das suas funções e isso expõe que eles estão em tratamento psicológico. Eles sentem vergonha desse afastamento?
MidiaNews
“Militares ficam com receio, vergonha mesmo, de os outros colegas o julgarem por afastamento”
Luana de Arruda – A maioria que passa pela avaliação psiquiátrica, percebe que realmente está sem condições de trabalhar naquele momento. Aí que ocorrem os afastamentos. Eles ficam com receio, vergonha mesmo, de os outros colegas julgarem e isso acaba gerando mais aflição de estar fora da corporação. Ainda se tem a ideia de que o emocional não é problema.
MidiaNews – Mas esse período distante das atividades profissionais é necessário, não é?
Luana de Arruda – É necessário e a gente faz um trabalho de preparar o paciente para o retorno às atividades. Muitas vezes, se afastam por 30 dias ou 60 dias. Nos preparamos ele para quando retornar às atividades esteja melhor.
MidiaNews – Há a máxima de que os pilares da saúde mental é a prevenção, percepção e tratamento. Como prevenir?
Luana de Arruda – A sociedade precisa buscar mais as informações e nós, enquanto profissionais da saúde mental, nos movimentarmos para falarmos mais sobre o assunto. Para que o paciente, com informações, consiga perceber se algo não está bem com ele.
MidiaNews – E como faz autoanalise?
Luana de Arruda – Quando as coisas começam a ser diferentes da rotina. Começa a perceber um estresse maior, os pensamentos estão muito desacelerados, muito negativos, um desânimo, uma dificuldade de seguir a rotina. É preciso se conhecer antes de tudo.
MidiaNews – Pela sua vivência clínica, o uso de drogas lícitas ou ilícitas é um problema que precisa ser combatido na Polícia?
Luana de Arruda – O consumo abusivo de álcool ou droga funciona muitas vezes como válvula de escape para situações do cotidiano da qual o indivíduo sente dificuldade de enfrentar problemas que esteja vivenciando.
O policial, que já possui a rotina desafiadora, quando manifesta o desejo pelo uso de drogas ou álcool as utiliza, muitas vezes, como fuga dos sintomas de estresse e ansiedade. E isso acaba gerando consequências negativas, principalmente quando se torna um vício.
MidiaNews – O Coronel Mendes, comandante da PM em MT, deu um entrevista falando que a instituição conta com apenas dois psicólogos e não tem recurso para contratar mais. Então, as associais de militares fazem um trabalho importante nesse sentido. Como a instituição poderia auxiliar nessa prevenção?
Luana de Arruda – Eu acredito que fazer prevenções dentro das instituições é necessário através de palestras, folder, voltado para a identificação de quadros de ansiedade e depressão.
FONTE: Midia News