quinta-feira, novembro 7, 2024

“Ditadura de esquerda”: Governistas e bolsonaristas celebram desfecho de audiência nos EUA


Bolsonaristas e governistas viram um saldo “positivo” na audiência “Brasil: uma crise de democracia, liberdade e estado de direito?” da última terça-feira (7), proposta a partir de desinformação sobre a democracia brasileira, no Congresso dos Estados Unidos. Articulado por representantes da extrema direita brasileira com o intuito de pregar a existência de uma falsa “ditadura de esquerda” no país, o encontro terminou com atuação forte dos democratas norte-americanos, que puseram em evidência os atos do dia 8 de janeiro em Brasília. No entanto, parlamentares de esquerda e de direita usaram o marco para comemorar a ação das duas comitivas que estiveram em Washington para influenciar e mobilizar congressistas norte-americanos para que participassem da discussão, que tem como pano de fundo a relação entre os dois países. 

A audiência, realizada em um subcomitê do Comitê de Assuntos Internacionais da Câmara, estava esvaziada, mas contou com presença de mais democratas do que republicanos. Os primeiros contestaram a falsa narrativa dos organizadores do encontro, de que o Brasil viveria uma ditadura, defendida pelo republicano Chris Smith, presidente do subcomitê. 

Por que isso importa?

É a primeira vez que uma audiência em outro país é realizada para discutir a tese bolsonarista, calcada em desinformação

Comitiva de progressistas também foi ao país norte-americano buscar democratas para contrapor o discurso reproduzido pelos republicanos

Quando a comitiva progressista foi a Washington, entre 29 de abril e 2 de maio, a audiência ainda não estava confirmada, mas sua provável realização já havia sido divulgada pela imprensa. Os parlamentares então aproveitaram a ocasião para tentar municiar democratas com “explicações da condição brasileira”, como explicou o deputado Rogério Correia (PT-MG).  

O senador Humberto Costa (PT-PE) e os deputados Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), Jandira Feghali (PCdoB-RJ) e Rafael Brito (MDB-AL) também integraram o grupo, que teve agendas com a sociedade civil, a embaixada do Brasil nos Estados Unidos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Rogério Correia e Humberto Costa se reuniram com assessores das parlamentares que compareceriam à audiência. “A gente explicou pra eles que no Brasil [o conceito de liberdade de expressão] é diferente. Aqui no Brasil, por exemplo, você não pode fazer discurso a favor do racismo e dizer que é liberdade de expressão. Você não pode defender ideias nazistas. Você não pode defender crimes. Não dá pra fazer essa comparação da legislação brasileira com a legislação americana. Essas pessoas estão sendo processadas e estão tendo as suas redes sociais bloqueadas porque estão cometendo crimes no Brasil”, afirmou Costa.

Alguns integrantes da comitiva conservadora que estiveram em Washington em março voltaram à capital norte-americana na primeira semana de maio para acompanhar a audiência, entre eles os deputados federais Eduardo Bolsonaro (PL-SP), Gustavo Gayer (PL-GO) e Bia Kicis (PL-DF), que, nas duas ocasiões, foram acompanhados pelos comentaristas Paulo Figueiredo e Allan dos Santos, que moram nos EUA. 

Quem colhe planta

O argumento da diferença entre conceitos de liberdade de expressão foi o mesmo utilizado pela democrata Susan Wild, líder da minoria no subcomitê de Saúde Global, Direitos Humanos Globais e Organizações Internacionais. 

“O Brasil, tal como a França, a Alemanha e outros países da Europa ocidental, cujas credenciais democráticas provavelmente não seriam questionadas por ninguém nesta sala, tem uma concepção de liberdade de expressão diferente da que temos aqui nos Estados Unidos. A abordagem do Brasil à liberdade de expressão, embora ampla, inclui barreiras de proteção”, disse Wild em seu discurso durante a audiência.

Também discursaram na ocasião democratas como o deputado Joaquin Castro, representante do Texas, e a congressista Sidney Kamlager-Dove, integrante do comitê e presidente do “Brazil Caucus”, grupo que discute as relações entre Brasil e EUA no Congresso estadunidense. Ela, cuja assessoria também se reuniu com parlamentares brasileiros, fez questionamentos sobre o 8 de janeiro e sobre o período da ditadura militar de 1964.

Em nota à Pública, Kamlager-Dove definiu a audiência como uma tentativa dos Republicanos de “minar” a democracia brasileira, disse que o evento buscou “interferir no processo judicial do Brasil” e ofereceu “uma plataforma aos indivíduos que espalham mentiras sobre as eleições”. 

A congressista ainda acrescentou que os deputados republicanos “só estão interessados ​​no debate em torno da luta brasileira contra a desinformação porque isso lhes permite se fazerem de vítimas enquanto enfrentam a responsabilização por suas próprias ações antidemocráticas e se protegerem por terem permitido a revolta do dia 6 de janeiro”. 

A audiência foi realizada na Comissão de Assuntos Internacionais dois meses após a primeira tentativa de uma comitiva bolsonarista junto ao Congresso dos EUA. O plano inicial foi frustrado pelo deputado democrata Jim McGovern, que divide a presidência da Comissão Tom Lantos de Direitos Humanos com Chris Smith e vetou o evento na comissão em março. 

A comitiva progressista também se reuniu com McGovern, que não compareceu à audiência na última terça, mas enviou uma  declaração. No texto, acessado pela Pública, o deputado classifica a audiência como um “uso vergonhoso” do Congresso dos Estados Unidos pela extrema direita brasileira “para amplificar seu ataque à democracia no Brasil, auxiliado e encorajado por membros do Partido Republicano”. 

Ditaduras, planos frustrados e novo pedido de sanção 

Do lado republicano, além de Smith, apenas a deputada Maria Elvira Salazar, representante da Flórida, compareceu à audiência. No estado norte-americano, a articulação bolsonarista é forte e Salazar, inclusive, foi uma das congressistas que receberam a comitiva de parlamentares liderada por Eduardo Bolsonaro (PL-SP) em março. Em seu discurso, Salazar exibiu foto de Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), o chamou de “totalitário” e reproduziu o discurso bolsonarista de que o ministro estaria censurando opositores do governo. A imagem foi amplamente compartilhada nas redes sociais.

Eduardo Bolsonaro compartilhou foto de Maria Elvira Salazar© Fornecido por Agência Pública

Chamado para testemunhar na audiência, o comentarista Paulo Figueiredo inicialmente se apresentou como neto de João Figueiredo e depois foi questionado se repudia o período de 1979 a 1985, governo de seu avô, último presidente da ditadura militar, mas se negou a responder. Ele alegou falar em nome dos parlamentares brasileiros quando convidou os norte-americanos a visitar o Brasil. 

Em relação ao Brasil, ele também pediu “sanções severas” e “retenção de recursos e fundos” pelos Estados Unidos, semelhante às demandas do movimento já apresentado pela Pública. “Com esta ajuda, garanto que as instituições do meu país reagirão e devolverão as nossas liberdades. É isso que peço em nome de milhões de brasileiros”, discursou Figueiredo.

No testemunho escrito enviado pelo comentarista – lido parcialmente por falta de tempo –, ele citou uma transmissão ao vivo realizada pelo argentino Fernando  Cerimedo em novembro de 2022 com supostas provas de fraude eleitoral nas eleições brasileiras. O vídeo se baseou em informações falsas e foi retirado do ar, já que o tribunal decidiu, em 2021, que discursos que disseminam mentiras sobre as eleições não são protegidos pela liberdade de expressão. Em 2023, a Pública  revelou que, pouco antes da transmissão ao vivo, Eduardo Bolsonaro pagou, com recursos de campanha, um funcionário de Cerimedo no Brasil e viajou à Argentina “patrocinado” pelo consultor político durante o segundo turno. 

Procurado, Figueiredo não respondeu aos questionamentos da reportagem sobre sua participação na audiência. O comentarista, no entanto, questionou a cobertura e o financiamento da Pública, informações disponíveis em nossa página de transparência no site da agência

Além de Figueiredo, o Partido Republicano também indicou para a lista de testemunhas Michael Shellenberger, responsável por compartilhar documentos do Twitter Files Brasil, e Chris Pavlovski, fundador da rede social de vídeos Rumble.

Pavlovski criticou a atuação dos Estados Unidos, hoje governado pelo democrata Joe Biden, por supostamente “permanecer em silêncio” e não “defender a liberdade de expressão e proteger as empresas americanas”. Fundada no Canadá e com sede nos EUA desde 2022, a empresa deixou de atuar no Brasil, de onde quem tenta acessar o site lê que a rede está “indisponível” no país “devido às exigências do governo brasileiro para remover criadores de nossa plataforma”. O pedido de remoção de conteúdos, no entanto, partiu do Judiciário, não do Executivo.

Como são minoria na Comissão de Assuntos Internacionais, os democratas indicaram apenas uma das quatro testemunhas ouvidas. Escolheram Fabio de Sá e Silva, advogado e professor de estudos brasileiros da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos. 

Silva começou seu depoimento definindo o 8 de janeiro como “o resultado de um longo processo em que políticos, influenciadores e outros, que dependem fortemente de plataformas de mídia social, trabalharam para desacreditar as instituições eleitorais brasileiras e espalhar duas ‘grandes mentiras’”: que as eleições foram fraudadas e que os militares poderiam intervir. 

Em entrevista à Pública, o professor afirmou que um dos focos de seu depoimento foi explicar o “contexto golpista” vivido pelo Brasil nos últimos anos e “remover dessa confusão toda a noção de que juiz não pode suspender conta ou perfil porque isso seria um abuso em si”, já que a remoção de conteúdos proibidos é prevista na legislação brasileira. 

Para Silva, “Chris Smith ficou um pouco abandonado”. “Ele estava visivelmente irritado no final. Eu acho que ele percebeu que perdeu totalmente o controle do evento, que foi tomando direções que não eram as direções que coincidiam com o enquadramento que ele atribuiu para a reunião”, avaliou. 

Após a audiência, os parlamentares bolsonaristas, liderados por Eduardo Bolsonaro, participaram de uma coletiva de imprensa promovida pelo grupo de lobby The Conservative Caucus. “O Brasil é o único caso no mundo que a censura está vindo pelas mãos do Judiciário. E eles estão exportando isso através de reuniões em Londres, Paris, Nova Iorque, enquanto todos olhamos”, propagou Eduardo Bolsonaro. Já Nikolas Ferreira aproveitou a oportunidade para elogiar Elon Musk, proprietário do X [antigo Twitter]: “ele coloca a liberdade de expressão no mundo”, disse. 

Em março, o The Conservative Caucus realizou uma recepção para os deputados. Em nota à Pública dias depois, o presidente da iniciativa, Jim Pfaff, disse que Alexandre de Moraes “se comporta como um ditador do Brasil” e que sua organização estaria comprometida “em expor essas violações dos direitos humanos e em incentivar nosso próprio governo a fortalecer sua determinação em ser um farol de esperança para os cidadãos oprimidos”.

Todos os lados cantaram vitória 

Não há consenso sobre o saldo final da audiência e a quem ela teria beneficiado. Enquanto os políticos da esquerda brasileira ressaltam que o evento teria terminado de forma positiva devido à atuação dos democratas, que teriam defendido a democracia brasileira, os bolsonaristas também comemoram publicamente pela oportunidade de denunciar a “ditadura da toga” supostamente vivida no Brasil. 

Gabriela Ritter, presidente da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav), esteve presente no evento e considera que a audiência cumpriu com seu “objetivo”, ainda que “a esquerda americana tenha tentado desvirtuar a pauta da audiência tentando direcionar ao ex-presidente [Bolsonaro]”. A Asfav nega que a invasão aos prédios públicos tenha sido uma tentativa de golpe de Estado e defende as pessoas condenadas. O grupo protocolou um documento no Congresso dos EUA no qual diz que os réus estão “submetidos a condições desumanas e a um julgamento injusto e tendencioso”. Ritter disse ainda que teve reuniões com parlamentares estadunidenses após o evento, mas não deu detalhes. 

David Nemer, antropólogo e professor na Universidade da Virgínia, que também acompanhou os depoimentos, avaliou o evento como “totalmente inexpressivo”: “Aqui nos Estados Unidos nem se sabe o que aconteceu, nem mesmo no Congresso americano”.

O deputado Chris Smith defendeu a relevância da audiência: “Nós ouvimos testemunhos poderosos sobre o uso da censura política e da perseguição que foi imposta ao povo do Brasil pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e pelo regime Lula”. Ele agradeceu aos parlamentares brasileiros por terem procurado o Congresso dos EUA e reafirmou que apresentará um projeto de lei sobre o Brasil. 

“MSN”





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