Conflitos armados, perseguições políticas, desastres naturais e violação dos direitos humanos: esses e tantos outros motivos levaram ao aumento da migração de pessoas pelo mundo, todas forçadas a saírem do próprio país em busca de refúgio e melhores condições de vida. Atualmente, cerca de 27,8 mil migrantes vivem em Mato Grosso, tendo em sua maioria venezuelanos, haitianos e bolivianos.
Jana Pessoa/Setas-MT
Dados disponibilizados pela Polícia Federal ao , via Lei de Acesso à Informação (LAI), apontam Cuiabá como o principal destino da maioria dos migrantes. A Capital lidera o ranking no estado, com aproximadamente 12.483 migrantes, seguida de Várzea Grande, com 3.438; Rondonópolis, com 2.283; Sinop, com 1.314; e em Lucas do Rio Verde, com 1.134 migrantes.
Quanto às principais nacionalidades presentes em todo o estado, há cerca de 14.718 venezuelanos, 5.432 haitianos, 2.344 bolivianos, 708 paraguaios e 690 cubanos. Os números passaram a ser contabilizados em fevereiro de 2022 e a última atualização aconteceu no início deste mês.
Arte: Annie Souza
“Ponte” para migrantes
Em entrevista ao , o padre Mauro Verzeletti, diretor do Centro Pastoral para Migrantes, conhecido como Casa do Migrante, em Cuiabá, afirmou que, para entender a questão, é necessário fazer uma análise geopolítica. Segundo ele, com o fechamento de fronteiras e o endurecimento das leis migratórias, a nível global, essas pessoas não conseguem avançar para as Américas Central e do Norte, sendo barradas no Panamá, de modo que acabam “descendo” para a América do Sul – o que leva, cada vez mais, ao aumento de refugiados na região.
“Muitos dos migrantes que estão na Colômbia ou que não conseguem avançar para o Panamá estão voltando para a América do Sul. Então, fazendo uma estimativa, nos próximos quatro anos, o fluxo migratório vai aumentar ainda mais na América do Sul”, avalia.
Arte: Annie Souza
Mauro mencionou um dos possíveis caminhos realizados por esses migrantes. Segundo ele, aqueles que chegam ao Chile, seguem para a Argentina e ingressam no Brasil, mais especificamente na região Sul do país, no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
“Já outros vêm para o Centro-Oeste, como Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. E há também aqueles que vão para a Amazônia. Então, Cuiabá é uma ponte para os que vão para o Sul e outras localidades, ou também um lugar para iniciar um projeto de vida”, explicou.
Rodinei Crescêncio/Rdnews
Padre Mauro Verzeletti, diretor do do Centro Pastoral para Migrantes, em Cuiabá
Casa de acolhimento e direcionamento
A Casa do Migrante, além de acolher e disponibilizar três refeições gratuitas diariamente, presta também serviços como emissão da Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), orientação e envio de documentos a serem emitidos pela Polícia Federal, assim como cursos de capacitação, como gastronomia, eletricista, estética, empreendedorismo e aulas de língua portuguesa.
“Têm casos que são muito emblemáticos, que mexem com a gente. Porque são seres humanos, que perderam as esposas, os filhos, e ainda têm que sair do próprio país e buscar refúgio”
Pe. Mauro Verzeletti
“Diariamente temos entre 80 e 100 pessoas hospedadas na Pastoral. Eles passam por esse processo de ir para o Sul do país, interiorização no estado ou inserção laboral. A maior dificuldade é na Polícia Federal, que é uma instância do Governo Federal que não tem, ainda, todo o recurso humano suficiente para agilizar o processo de emissão dos documentos. Por exemplo, os migrantes vêm aqui, nós fazemos o encaminhamento, e a Polícia Federal só consegue agendar para dali a 40 dias, ou até dois meses”, declarou.
Padre Mauro reforçou quanto a necessidade em saber ouvir essas pessoas. Segundo ele, não é possível solucionar todos os problemas, visto que há muitas questões vivenciadas por eles antes de chegarem a Cuiabá, em especial aqueles que sofreram com a fome ou perseguições políticas. Além de que, no país de origem, essas pessoas tinham um núcleo familiar, amigos e trabalhavam.
“Têm casos que são muito emblemáticos, que mexem com a gente. Porque são seres humanos, que perderam as esposas, os filhos, e ainda têm que sair do próprio país e buscar refúgio. Então, são situações muito fortes que marcam e, claro, aquela pessoa ficará com um trauma, provavelmente, para vida toda. Então, a gente busca ser essa pessoa que vai ouvir e dar espaço para que eles sejam ouvidos”, relatou.
Melhores oportunidades
A venezuela Belkys Rodriguez, de 34 anos, que chegou em Cuiabá em janeiro deste ano, passou pela Casa do Migrante e, há cerca de um mês, conseguiu sair da Pastoral e alugar uma casa, onde mora com o marido dela e um amigo de ambos, que é cubano. Questionada pela reportagem sobre o que a levou a sair da Venezuela, Belkys explicou que seu país de origem está passando por uma crise econômica, política e social e ressalta o acolhimento recebido no Brasil.
Conforme divulgado amplamente pela mídia, a população venezuelana tem enfrentado dificuldade diante do aumento expressivo do desemprego e do fechamento de empresas. Além disso, muitos estão passando fome e ficando doentes, devido à escassez de alimentos e de remédios.
“Esse foi o único país que nos deu a oportunidade de termos documentos, de nos estabelecermos e buscar um trabalho, para ajudar nossas famílias”
Belkys Rodriguez
“Eu já estive na Colômbia, Equador, Peru e não é nada comparado com o Brasil. Esse foi o único país que nos deu a oportunidade de termos documentos, de nos estabelecermos e buscar um trabalho, para ajudar nossas famílias. Eu tenho minha mãe e meu pai lá na Venezuela, e também meus três filhos e minha neta. Então, eu sou a única que saiu. Eu vim por eles, para poder ajudá-los. Por isso eu vim”, disse Belkys.
Quanto às dificuldades enfrentadas, a venezuelana citou, primeiramente, a barreira do idioma. Ela explicou que consegue compreender, mas que fala pouco. “Entendo bastante o idioma, também sei falar. Mas não muito, pouco a pouco, já que tem poucos meses que estou aqui”.
Belkys afirmou que ainda não está trabalhando, pois ainda aguarda a emissão de seus documentos. Assim, o marido dela e o amigo que estão mantendo a casa em que moram. Além disso, ela recorre à Casa no Migrante sempre que precisa – para comer, por exemplo, já que eles possuem um fogão, mas ainda não conseguiram comprar um botijão de gás. A Pastoral também ajuda com doação de roupas e outros itens de uso diário.
“Estou contando os dias, ansiosamente, para retirar os documentos. Ontem eu falei para o meu amigo: eu quero trabalhar, me estabilizar. Ainda assim, aqui eu tenho uma rotina ao levantar-me, tenho minha mente ocupada. Eu venho de terra quente também, então me acostumei com tudo aqui”, declarou.
Rodinei Crescêncio/Rdnews
Belkys Rodriguez, venezuelana que saiu do próprio país por melhores condições de vida e vive, atualmente, em Cuiabá
Mudança no ciclo migratório
Ao , o presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, Inácio Werner, fez uma avaliação da mudança do ciclo migratório no estado. O início, explicou, foi registrado entre os séculos 18 e 20, quando habitantes das regiões Sul e Sudeste do país vieram para Mato Grosso no intuito de “desbravar” a terra.
Já na década de 1970, os sulistas migraram para o Norte de Mato Grosso, no intuito de ocupar as áreas não habitadas e integrar a “nova fronteira agrícola” que se consolidava na região. Além disso, Inácio destaca outro motivo, que seria “a esperança de melhorar de vida”.
“A gente tem que aproveitar, dialogar com a nossa cultura, valorizando a deles também”
Inácio Werner
Pulando para os anos 2000, houve outro “boom” no fluxo migratório no estado, diante das obras planejadas para a Copa do Mundo, no Brasil, que aconteceu em 2014.
“Veio uma grande quantidade de migrantes haitianos e senegaleses, atraídos para Mato Grosso por conta das obras da Copa, que então, trouxe um outro fenômeno migratório, já de pessoas que vieram e precisavam se integrar com os desafios da língua, da cultura e de tudo”, explicou.
Werner explicou que, em cada período da história mato-grossense, existiu um desafio, a partir dessa questão migratória.
Segundo ele, a vinda de haitianos em grande quantidade – e, agora, de venezuelanos – não se compara às anteriores, visto que, nas duas situações, esses migrantes foram forçados a saírem do próprio país em busca de esperança, abrigo e formas de ajudar, financeiramente, seus familiares que permaneceram na terra natal e enfrentam problemas como a fome, doenças, perseguições e entre outras questões. Inácio destaca que os migrantes ainda sofrem com o preconceito, com a xenofobia e diversos tipos de assédio nos países em que buscam refúgio.
Montagem/Divulgação
No detalhe, Inácio Werner, presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos de Mato Grosso
“É uma situação complexa. Eu acho que, com relação aos haitianos, também pela questão racial, eles sofreram muito. Somado a isso, trazendo os migrantes venezuelanos, há uma valorização cultural muito forte por parte deles, o que eu acho muito interessante, visto que eles têm uma realidade muito forte. Então, a gente tem que aproveitar isso, dialogar com a nossa cultura, valorizando a deles também”, declarou.
FONTE: RDNEWS