Maria de Lourdes Fanaia e Ângela Maria de Souza
O objetivo da pesquisa foi dissertar sobre Mãe Bonifácia, uma personagem afro-brasileira que viveu no período da escravidão em Cuiabá. São escassas as pesquisas científicas sobre a personagem, e o estudo pode contribuir com a educação formal e informal no espaço cuiabano. A força da história de Mãe Bonifácia resultou em um monumento localizado numa área de preservação do cerrado cuiabano, repleto de fauna e flora (Almeida, 2016, s.p.). Este local esteve sob tutela do Batalhão de Infantaria Motorizada (44º), antigo 16º Batalhão de Caçadores, até 1978, pois pertencia ao Ministério do Exército. A partir de 1990, o Exército doou a área para o governo do Estado.
Sobre Mãe Bonifácia, como aponta Mendes (2018), existem várias versões difundidas em Cuiabá, pertencentes ao mundo dos mitos, contos e lendas que povoam o imaginário social cuiabano e da comunidade mato-grossense.
Dentre as várias narrativas sobre Mãe Bonifácia, algumas se contradizem: ora escrava, ora alforriada; tendo suas funções divergindo entre benzedeira, conhecedora de plantas medicinais, uma mulher hábil com bordados de rendas ou alguém que indicava caminhos para os escravizados que buscavam rotas para os quilombos. É preciso, primeiramente, repensar o contexto e as dinâmicas da sociedade que fizeram parte das ações, bem como o contexto das autoridades políticas do governo citadino, para que a personagem ganhasse visibilidade: como e por que o parque recebeu o nome de Mãe Bonifácia? Quais os efeitos da personagem no cenário cuiabano? A questão em debate não são as evidências do discurso historiográfico que classifica a história como impensável — os fatos são sempre questionáveis, importantes e espiralares.
Mãe Bonifácia faz parte da memória popular no espaço citadino desde o século XIX, até então invisível e rotulada pelos estigmas racistas no meio social. Ela ganha relevância na história local a partir da década de 1990, em decorrência da persistente memória do lugar em que viveu — e que outrora serviu de base militar. Nesse contexto, o parque que leva o seu nome surgiu num momento em que a capital mato-grossense passou por processos de reurbanização, mais precisamente na década de 1990. Houve, além disso, uma migração acelerada, que provocou um verdadeiro inchaço urbano na periferia da Grande Cuiabá, entre outras mudanças (Mendes, 2014, p. 501).
“Mãe Bonifácia faz parte da memória popular no espaço citadino desde o século XIX, até então invisível e rotulada pelos estigmas racistas no meio social”
O parque, nos dias atuais, é muito frequentado, seja por moradores ou por visitantes. Na nossa concepção, pode ser considerado como um espaço de aprendizagem não formal, constituindo a história e a geografia da cidade, envolvendo aspectos culturais, sociais e políticos. O córrego do Caixão e o parque remetem à memória da personagem, pois adquiriram no tempo presente certa visibilidade — ainda que, no passado, tenham sido associados a estigmas racistas. Como disse Neves (2007, s.p.): “Tais lugares de memória são uma construção histórica, e o interesse que despertam vem, exatamente, de seu valor como documentos e monumentos reveladores dos processos sociais, dos conflitos, das paixões e dos interesses que, conscientemente ou não, os revestem de uma função icônica.” Trazer à tona, por meio desta escrita científica, a história da população negra implica, inicialmente, despir-se do colonialismo, seguido de um trabalho minucioso de associar informações.
O apagamento e a invisibilidade do negro na história, apesar de avanços nas pesquisas recentemente desenvolvidas, ainda são cicatrizes coloniais persistentes no Brasil. Sem uma história oficial, muitos personagens negros figuram na memória social através da oralidade, por meio da qual se percebem aspectos de sua vida e feitos em certos grupos e localidades. A perspectiva branca, colonial e patriarcal incide de forma ainda forte no apagamento da presença da mulher negra na história, imprimindo uma falsa ideia de pouca participação desses sujeitos nas lutas pela emancipação da população negra e na formação cultural e econômica do Brasil.
Foi o que sucedeu com Mãe Bonifácia: uma personagem da história que está na memória social e, entre cruzamentos de informação, passou a configurar uma personalidade histórica — portanto, conforme os documentos consultados, ela não é uma lenda sobrenatural.
Algumas das informações disponíveis apontam para a existência de uma mulher à frente de seu tempo, presente em movimentos sociais e articulada para garantir a própria sobrevivência e a dos negros que procuravam seu apoio. Mãe Bonifácia conseguiu estabelecer-se em um espaço onde podia movimentar-se e relacionar-se com o seu entorno. A partir dessas relações e movimentos, ganhou notoriedade e seu nome atravessa o tempo histórico, sendo reconhecida como líder espiritual, rezadeira e parteira. Sua influência local foi tamanha que chegou a ser homenageada no nome de um bairro, ainda que posteriormente tenha sido substituído. Por seu apoio aos negros escravizados fugidos, Mãe Bonifácia contribuiu na reorganização de negros em resistência numa sociedade hostil às suas existências.
Não se pode perder de vista os aspectos históricos e geográficos da influência de Mãe Bonifácia. A localidade em que viveu tinha um papel militar, mas também proximidade com o espaço dos desvalidos da época. Por essa razão, é um território que atualmente carrega o nome de “Quilombo”. Pode-se dizer que Mãe Bonifácia integra o rol de personalidades negras cujos atos propiciaram a liberdade de grupos negros, contribuindo também para a formação da comunidade negra que hoje existe em Cuiabá.
O monumento Mãe Bonifácia não é inócuo, pois a construção de sua imagem e história surge quando as questões raciais ganham visibilidade. Como exemplo, temos a Lei nº 10.639/2003, que inclui o ensino da história e cultura afro-brasileira na Educação Básica. É necessário levar em conta a visibilidade da mulher afrodescendente na história mato-grossense, ainda que, desde o período imperial, Mãe Bonifácia já fizesse parte do cenário local. No que diz respeito ao parque, o Decreto Estadual nº 1.470, de 9 de junho de 2000, legalizou o local enquanto parque, mantendo o topônimo da figura feminina, ícone da história afro-cuiabana.
Desse modo, a área onde o parque se encontra, o bairro Quilombo, seu entorno e o córrego do Caixão são, desde a década de 1860, locais que indicam uma geografia de rotas de fuga dos escravizados. A história desses três lugares convida-nos a pensar na protagonista: Mãe Bonifácia. Sua história reverbera no meio social, pairando na memória coletiva de forma consolidada, fazendo parte da cultura cuiabana. Isso porque a memória é constituída de personagens, e temos o compromisso de preservar essa história. De acordo com Polack (2012), existem lugares de memória, particularmente ligados a lembranças — que podem ser pessoais — e esses lugares tornam-se a memória da memória.
“O monumento Mãe Bonifácia não é inócuo, pois a construção de sua imagem e história surge quando as questões raciais ganham visibilidade. Como exemplo, temos a Lei nº 10.639/2003, que inclui o ensino da história e cultura afro-brasileira na Educação Básica”
O parque pode ser considerado um espaço de apoio à memória de Mãe Bonifácia e de um período histórico em que viveu. Interpretando Nora (2003), o espaço da memória cristalizou Mãe Bonifácia, uma vez que prioriza os valores da sociedade cuiabana de um determinado período. Assim, o parque tornou-se um lugar de memória que desafia a história oficial ao inserir Mãe Bonifácia na narrativa histórica de Cuiabá. Outro aspecto relevante é que Mãe Bonifácia não está apenas no imaginário popular, mas se inscreveu na história do Estado, contrapondo a ideia da ausência de mobilidade negra no período escravocrata — algo até então inimaginável.
Sua história tem uma força ancestral, que nos leva a refletir sobre as estratégias utilizadas pelos negros para se reinventarem e se estabelecerem na sociedade — esforços sobre-humanos para existir, articular entre os seus e garantir a sobrevivência de seus descendentes. É sobre essa história negada que ecoa a história de Mãe Bonifácia.
Quanto à existência de Mãe Bonifácia, há um registro do Tribunal de Relação de 1864 que revela um fragmento referindo-se a um local denominado “May Bonifácia” da seguinte forma: “Estava no local denominado May Bonifácia, no subúrbio da cidade que vinha do Ribeirão. Parei num pequeno córrego em que se achava banhando e, nesse ato, chegou o soldado.”
Consultamos outros documentos e, antes de tudo, podemos afirmar: o documento é um acontecimento, grande ou pequeno, e pode ser definido como todo evento que deixou, até nós, uma marca material (Veyne, 1998). É sobre essa história negada que ecoa a história de Mãe Bonifácia.
Texto extraído do artigo publicado na revista Documento/Monumento – UFMT. Disponível em: https://www.ufmt.br/ndihr/revista
*Maria de Lourdes Fanaia – Profª Drª da Universidade de Cuiabá (UNIC) e Ângela Maria dos Santos – Profª Drª da Faculdade EduCare e da Educação Básica do Estado de Mato Grosso
FONTE: RDNEWS