quinta-feira, julho 31, 2025

Especialistas afirmam que “PL da Devastação” ignora indígenas e ameaça o próprio agronegócio; entenda | RDNEWS

Em discussão desde 2021, o Projeto de Lei 2.159/2021- conhecido como PL do Licenciamento ou PL da Devastação – voltou ao centro do debate político e ambiental no Brasil. A proposta, aprovada pelo Congresso Nacional e que agora aguarda sanção ou veto do presidente Lula (PT), busca instituir um novo marco legal para o licenciamento ambiental no país. Entre os principais pontos considerados polêmicos está a criação da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que permite que determinados empreendimentos obtenham licenciamento por meio de autodeclaração, sem análise prévia por órgãos ambientais.

Os defensores do PL, majoritariamente parlamentares da bancada ruralista e setores do agronegócio, argumentam que a atual legislação é excessivamente burocrática e que isso tem travado investimentos e o desenvolvimento nacional. Para eles, o PL representa uma modernização necessária, que agiliza processos sem comprometer o meio ambiente, sobretudo com o uso de tecnologias como imagens de satélite e drones na fiscalização.

Fernando Augusto/Ibama

Por outro lado, ambientalistas, pesquisadores e representantes de povos indígenas afirmam que o texto abre margem para retrocessos ambientais, especialmente pela ausência de critérios técnicos, redução da exigência de estudos de impacto e a exclusão de comunidades diretamente afetadas. Um dos pontos amplamente discutidos é que o projeto foi elaborado sem consulta prévia aos povos indígenas, comunidades quilombolas e pequenos produtores – justamente os grupos diretamente vulneráveis às consequências desses empreendimentos, caso o PL seja sancionado.

Ao , a líder indígena Eliane Xunakalo, presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), afirmou que a proposta representa impactos enormes e até irreparáveis. Segundo ela, o texto não dá o direito dos indígenas serem ouvidos nem consultados. 

“Tiram nossos direitos sobre algo que é a nossa vida: o território. Uma lei aprovada às pressas, sem considerar conhecimento científico, coloca em risco as vidas dos povos indígenas, quilombolas e de toda a sociedade”, diz Xunakalo, que ainda ressaltou que os empreendimentos previstos não consideram os territórios em processo de demarcação.

Annie Souza/Rdnews

Eliane Xunakalo, presidente, Fepoimt

Eliane Xunakalo, presidente da Fepoimt

“Como ficam esses territórios? Como ficam as pessoas que estão morando nesses territórios? Já imaginou se eu entro na sua casa e abro sua geladeira ou entro no seu quarto sem falar com você? Ou simplesmente faço um buraco no meio da sua sala? Você iria gostar? Com certeza, ninguém iria gostar. Então por que com os povos indígenas todo mundo faz o que bem entende? Não é assim. A gente tem a nossa casa, a gente tem o nosso território. Não custa nada conversar e debater. Eu acredito que um debate seja bom para ambos os lados”, destaca.

Como ficam as pessoas que estão morando nesses territórios? Já imaginou se eu entro na sua casa e abro sua geladeira ou entro no seu quarto sem falar com você? Você iria gostar?


Eliane Xunacalo

A líder indígena critica especialmente o modelo autodeclaratório de licenciamento para atividades de baixo impacto. “Com uma lei tão morosa e burocrática como a atual já é difícil identificar e punir quem comete crimes imagina com esse tipo de licença?”, questiona. Para ela, o problema do sistema atual não está nas leis, mas na falta de estrutura e de servidores públicos para realizar a fiscalização.

À reportagem, o engenheiro florestal Lucas Barros da Rosa, bacharel pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e doutorando na University of British Columbia, no Canadá, compartilha da mesma preocupação. Para o pesquisador, o projeto não resolve o gargalo da morosidade, como alegam os defensores. 

“O principal ponto que causa essa lentidão é o déficit de analistas ambientais. Sem profissionais suficientes, a fiscalização, após o licenciamento autodeclaratório, se torna impraticável”, explica.

Barros alerta ainda para os impactos diretos sobre o regime de chuvas no Brasil, destacando que a redução da vegetação nativa impacta o ciclo da água, principalmente na Amazônia, e isso afeta o transporte de umidade para o restante do país, agravando, ainda mais, as crises hídricas. Segundo ele, os prejuízos ambientais podem atingir justamente o agronegócio, que hoje apoia a proposta.

“A falta de água, no futuro, pode ser um problema para eles mesmos, criado pelas decisões que estão tomando agora”, salienta.

Arquivo Pessoal

Lucas Barros da Rosa

O engenheiro florestal e pesquisador Lucas Barros da Rosa

 

Outro ponto levantado pelo pesquisador é a contradição do PL com os compromissos internacionais firmados pelo Brasil, como, por exemplo, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP30), que acontecerá em novembro deste ano, no estado do Pará, cujos principais temas a serem discutidos são:

  • Redução de emissões de gases de efeito estufa
  • Adaptação às mudanças climáticas
  • Financiamento climático para países em desenvolvimento
  • Tecnologias de energia renovável e soluções de baixo carbono
  • Preservação de florestas e biodiversidade
  • Justiça climática e os impactos sociais das mudanças climáticas

 

“A aprovação desse PL vai na contramão do que o país prometeu na COP30 e em acordos multilaterais de descarbonização. Isso afeta a imagem do Brasil e afasta investimentos internacionais voltados à conservação ambiental”, ressalta.

Mudanças climáticas

Para a doutora em Ecologia e Recursos Naturais, Solange Kimie Ikeda Castrillon, professora e pesquisadora da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat) – campus de Cáceres -, mesmo com a presença de profissionais altamente qualificados dentro dos órgãos ambientais, como por exemplo biólogos e geólogos, que, na prática, podem contribuir nesse processo de discussão e criação de projetos de leis, ainda assim, “isso não é levado em conta”.

Reprodução

Solange Kimie Ikeda Castrillon

Professora e pesquisadora da Unemat Solange Kimie Ikeda Castrillon

“Você tem que pensar também no impacto social. Você precisaria estudar todos os impactos de como você fará para um empreendimento chegar naquele território e os impactos que podem causar àquelas populações tradicionais, ribeirinhas e indígenas que estarão nas proximidades. Até mesmo aqueles que não estão naquele lugar e podem ser impactados. Então, é pensando nesse sentido que esse Projeto de Lei precisaria ter ouvido mais os especialistas e a própria comunidade. Quantas vidas podem ser perdidas quando você não organiza isso bem?”, indagou Castrillon.

A maioria das pessoas desse planeta não está devastando esse planeta, é uma minoria. Mas é uma minoria que consome muito das riquezas e que não pensa no que é a maioria


Solange Kimie Ikeda Castrillon

Questionada se o PL desconsidera o princípio da precaução, algo essencial para a proteção ambiental, a professora disse que sim, destacando que a precaução deve ser utilizada em todos os aspectos da vida em sociedade – e chegando a comparar com a decisão de formar uma família: “Você faz toda uma estratégia, de onde vai levar seu filho para estudar, onde vai organizar a vida das pessoas que estão ali”.

“Quanta gente hoje está comemorando para sancionar esse PL e  pode ser que, no futuro, sinta falta daquela mata que permitia que tivesse uma temperatura mais amena, que permitia as chuvas, permitia um solo saudável. Quando, no futuro, você deixar de ter água para aquele próprio gado que você está pensando, hoje, em criar mais, você vai deixar de ter ganho econômico e as pessoas vão deixar de ter saúde, deixar de ter segurança alimentar, tudo por uma decisão que a gente tomou no passado. É disso que se trata”, alerta.

Os especialistas reconhecem que é necessário rever o atual sistema de licenciamento ambiental, entretanto os três defendem um processo inclusivo, que respeite os ecossistemas e as comunidades tradicionais. “A gente não é contra estrada, desenvolvimento, mas precisa ser feito com diálogo, com respeito. O que não dá é aprovar lei sem ouvir ninguém e depois querer consertar o estrago”, diz Eliane Xunakalo.

Campanha nacional

As críticas ao PL 2.159/2021 motivaram uma campanha nacional de mobilização pelo veto presidencial, inclusive nas redes sociais com as hashtags: #VetaLula; #DevastaçãoNão; #PLdaDevastação; #VetaTudoLula.

Mídia Ninja

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Algumas das hashtags utilizadas na campanha online contra o PL 2.159/2021

A aprovação desse PL vai na contramão do que o país prometeu na COP30 e em acordos multilaterais de descarbonização. Isso afeta a imagem do Brasil e afasta investimentos internacionais voltados à conservação ambiental


Lucas Barros da Rosa

“Não temos lobby, mas temos argumentos, temos dados, temos vida. E estamos lutando para que essa lei não seja sancionada do jeito que está”, afirma a presidente da Fepoimt.

Sanção ou veto

A decisão final está nas mãos do presidente Lula, que enfrenta forte pressão de diferentes setores. Eliane, Lucas e Solange demonstram o desejo pelo veto, porém confessam o ceticismo sobre a possibilidade do veto integral. Entretanto, reforçam que esse seria o único caminho para abrir um novo debate. 

“O ideal seria reconstruir o projeto com base no diálogo. A legislação precisa ser atualizada, mas não às custas da destruição do que ainda temos”, diz Barros.

“Ao brigarmos pela manutenção da nossa casa, nós também estamos brigando pelo seu direito de ter um futuro, seu direito de ter rio, seu direito de ter comida boa e saudável. Pelo seu direito de ter um ar respirável. E esse direito, a gente não está brigando porque a gente é bonzinho não. É porque é a nossa casa, é a nossa vida. Então, que a sociedade não nos veja como atraso. Que ela nos veja como aliados para que todos nós possamos ter um bem viver juntos”, diz Xunakalo.

“A maioria das pessoas não está devastando esse planeta, é uma minoria. Mas é uma minoria que consome muito das riquezas e que não pensa no que é a maioria”, conclui Castrillon.

FONTE: RDNEWS

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