Rodinei Crescêncio
No mundo acelerado pelo colapso, parece que proteger a vida virou obstáculo. A recente aprovação da PL 2.159/2021 no Senado, o novo marco do licenciamento ambiental conhecido popularmente como “PL da Devastação”, é sintoma disso: sob o discurso da eficiência e do “destravar do Brasil que produz”, desmontam-se pilares de proteção ambiental conquistados a duras penas desde a Constituição de 1988.
Essa proposta, que agora aguarda votação final na Câmara, dispensa o licenciamento para uma série de atividades potencialmente degradantes e transfere ao empreendedor a responsabilidade por definir o grau de impacto ambiental, uma inversão onde quem lucra passa a ser juiz da própria ação. Num país em que os desastres de Mariana e Brumadinho ainda sangram os rios e as famílias, trata-se de uma aposta na impunidade institucionalizada.
“A defesa do licenciamento ambiental não é uma pauta técnica, mas um grito contra o esvaziamento da democracia, contra o silenciamento das comunidades tradicionais e contra a destruição irreversível da biodiversidade.”
Mas há algo mais profundo em jogo. A flexibilização do licenciamento não é apenas um rearranjo normativo, é uma escolha civilizatória. Escolhe-se, mais uma vez, sacrificar o futuro comum em nome de um modelo que entende a natureza como estoque, o território como mercadoria e os povos como entrave. Nesse cenário, pensar com os saberes do Sul Global não é luxo intelectual, é questão de sobrevivência, principalmente para os habitantes desta região do globo, como nós.
Boaventura de Sousa Santos lembra que vivemos um “fascismo territorial”, onde os corpos que ocupam a terra com outros sentidos, como os povos indígenas, quilombolas, camponeses etc., são alvos sistemáticos de violência simbólica e material. A PL da Devastação se insere nesse contexto como ferramenta jurídica de apagamento: legaliza o que antes era exceção e fragiliza a escuta dos que mais conhecem, protegem e habitam o território.
A filósofa Déborah Danowski, dialogando com os povos da floresta, propõe um deslocamento: em vez de perguntar como salvar o planeta, devemos perguntar “como viver num mundo que não nos quer vivos?” A ecopolítica do Sul Global parte dessa radicalidade, ela não pretende salvar o mundo tal como ele está, mas subverter suas bases.
Ailton Krenak já disse que “adiar o fim do mundo” é um gesto coletivo e político. E é disso que se trata: a defesa do licenciamento ambiental não é uma pauta técnica, mas um grito contra o esvaziamento da democracia, contra o silenciamento das comunidades tradicionais e contra a destruição irreversível da biodiversidade.
Quando o poder escolhe devastar em nome da produção, ele nos convoca a resistir em nome da vida. Não apenas a vida biológica, mas a vida com sentido, enraizada no pertencimento, na reciprocidade e no cuidado. Diante da máquina de moer o mundo, talvez a mais radical das revoluções seja reaprender a escutar a Terra.
Escrito com Sara Nadur Ribeiro
Maurício Munhoz Ferraz é assessor do presidente do Tribunal de Contas de Mato Grosso e professor de economia
FONTE: RDNEWS