Rodinei Crescêncio
O youtuber Felca recolocou no centro do debate brasileiro um tema que sempre a gente empurra para depois: quem governa as redes quando elas governam a nossa atenção? No vídeo que viralizou na semana passada (6 de agosto), Felca denuncia a “adultização” e a exploração de crianças em conteúdos que circulam livremente, e aponta como os próprios mecanismos de recomendação ajudam a impulsionar esse material. O efeito político foi imediato: surgiram dezenas de propostas na Câmara para enfrentar a exposição de menores e cobrar das plataformas respostas mais firmes; no Senado, senadores formalizaram pedido de CPI para investigar influenciadores e empresas digitais. Ao mesmo tempo, parte da oposição acusa o governo e aliados de usar o episódio para “embutir” uma regulação ampla das redes sob o manto da proteção infantil.
Se escutarmos a sociologia das plataformas, a surpresa deveria ser zero. Zeynep Tufekci lembra que não é “conteúdo” em si que vence, mas aquilo que maximiza previsibilidade e engajamento e isso frequentemente significa choques morais, erotização e polêmicas fáceis. Shoshana Zuboff chama esse arranjo de “capitalismo de vigilância”: modelos de negócio que dependem da captação e da modulação de comportamentos em escala. Traduzindo: enquanto o incentivo econômico for pagar pelo clique e pela permanência, o algoritmo continuará oferecendo o que mais captura o nosso olhar, inclusive quando isso é tóxico para crianças.
“Se o Brasil conseguir sair do pingue-pongue ideológico e encarar o desenho institucional das plataformas, o que foi denunciado por Felca pode deixar de ser catarse e virar política pública”
Mauricio Munhoz
O filósofo Byung-Chul Han fala em “psicopolítica” e “sociedade do cansaço”: uma autogestão performativa que transforma tudo, inclusive a infância, em vitrine e capital simbólico. Quando pais e produtores aprendem, por osmose algorítmica, que certos enquadramentos “rendem”, a fronteira entre cuidado e espetacularização se dissolve. O problema, portanto, não é só punir abusos pontuais (embora seja urgente quando há violação de direitos); é reconfigurar o campo de incentivos que naturaliza a exploração sob o disfarce de entretenimento.
Daí a tentação regulatória. Mas “regular redes” não é um único botão. Há, pelo menos, três frentes: (1) regras de design e transparência algorítmica: auditorias independentes, acesso a dados para pesquisa, impacto específico sobre menores; (2) governança de conteúdo: devido processo, moderação com prazos e recursos, padrões claros para formatos que envolvam crianças; (3) responsabilização econômica: separar publicidade e monetização de qualquer material com menores, com sanções efetivas para reincidência. Safiya Noble mostrou como sistemas de busca reproduzem hierarquias, o Brasil pode ir além do moralismo e atacar a arquitetura da descoberta e da recomendação.
Há riscos, claro. Evgeny Morozov nos alerta contra “soluções tecnológicas” que trocam um problema por outro: transparência pode virar caixa-preta se vier sem verificabilidade, remoções em massa podem sufocar denúncia legítima e jornalismo. E há o risco político doméstico: embates binários “liberdade versus censura” empobrecem a discussão e travam medidas concretas de proteção de crianças enquanto o relógio do engajamento não para. Desde o vídeo de Felca, plataformas anunciaram revisões e derrubaram contas investigadas, mas reações reativas não substituem governança estrutural.
O caminho mais sensato combina freios e contrapesos: transparência com auditoria externa; proteção da infância com salvaguardas à expressão; sanção a quem lucra com exploração com garantias processuais. Se o Brasil conseguir sair do pingue-pongue ideológico e encarar o desenho institucional das plataformas, o que foi denunciado por Felca pode deixar de ser catarse e virar política pública: menos pânico, mais engenharia social democrática. Afinal, como diria Bruno Latour, não há “online” e “offline”: há redes sociotécnicas que configuram o mundo comum. Cabe a nós decidirmos quem escreve o código desse comum.
Escrito com Sara Nadur Ribeiro.
Maurício Munhoz Ferraz é assessor do presidente do Tribunal de Contas de Mato Grosso e professor de economia
FONTE: RDNEWS