“Vida fácil do crime se propagou e trouxe fascínio às crianças”

A socióloga Patrícia Carvalho, que há seis anos integra o Núcleo de Mediação Escolar da Secretaria Estadual de Educação (Seduc), afirmou que a ideia de “vida fácil” propagada pelo crime tem exercido um perigoso fascínio sobre crianças e adolescentes em Mato Grosso.

Infelizmente, o que vem se propagando é a vida fácil do crime. Isso traz certo fascínio para crianças que não são orientadas adequadamente dentro do seio familiar

 

Segundo ela, vivemos hoje um “contexto social de violência extrema” e a ausência de orientação adequada dentro das famílias tem deixado jovens vulneráveis a esse discurso, que acaba refletindo em comportamentos violentos dentro e fora das escolas.

 

“Infelizmente, o que vem se propagando é a vida fácil do crime. Isso traz certo fascínio para crianças que não são orientadas adequadamente dentro do seio familiar. Isso faz com que acabem reproduzindo esse comportamento e, infelizmente, adotando ações de extrema violência”, afirmou a especialista em entrevista ao MidiaNews.

 

Carvalho afirmou que, quando acontecem casos extremos de violência dentro das escolas, a responsabilidade é de toda a sociedade e não somente da Secretaria de Educação ou de Segurança.

 

Em agosto, ganhou a mídia estadual o episódio em que quatro estudantes da Escola Estadual Carlos Hugueney, em Alto Araguaia, foram filmadas espancando uma colega de 12 anos. A agressão foi investigada pela Polícia Civil e a Justiça determinou a internação provisória de três das quatro agressoras. A quarta integrante do grupo, por ter 11 anos no dia do fato, não foi internada, seguindo o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

 

“É um problema coletivo, que precisa ser enfrentado a muitas mãos para ser gerenciado de forma adequada. Aprendemos com o meio e reproduzimos o que vivemos. Ninguém oferece carinho, amor ou compreensão se só recebe agressão e violência. Eles acabam reproduzindo isso com colegas, como forma de expressar frustrações dentro do contexto social”, disse Carvalho.

  

Confira os principais trechos da entrevista (e o vídeo com a íntegra ao final da matéria):

 

MidiaNews – Nos últimos meses tivemos registros de agressões graves dentro de escolas em Mato Grosso. O que esses episódios revelam sobre o atual cenário da violência escolar no Estado?

 

Patrícia Carvalho – Nós vivemos um contexto social de violência extrema. Infelizmente, essa violência também adentra os muros das unidades escolares, fazendo com que nossos estudantes expressem, dentro do seu ambiente comum – que é a escola –, o que vivenciam no meio social.

 

 

 

MidiaNews – Em casos de violência nas escolas protagonizados por alunos, é possível apontar um responsável direto?

 

Patrícia Carvalho – Quando casos extremos acontecem, a responsabilidade é de toda a sociedade, não só da Secretaria de Educação ou de Segurança. É um problema coletivo, que precisa ser enfrentado a muitas mãos para ser gerenciado de forma adequada. Aprendemos com o meio e reproduzimos o que vivemos. Ninguém oferece carinho, amor ou compreensão se só recebe agressão e violência. Eles acabam reproduzindo isso com colegas, como forma de expressar frustrações dentro do contexto social.

 

MidiaNews – Nos últimos meses, um caso ganhou atenção da mídia por conta de uma jovem de Alto Araguaia que apanhou de colegas de escola. E chamou atenção o fato de as alunas terem criado um grupo com regras semelhantes às de uma facção criminosa. Como interpreta esse comportamento?

 

Patrícia Carvalho – Infelizmente, o que vem se propagando é a vida fácil do crime. Isso traz certo fascínio para crianças que não são orientadas adequadamente dentro do seio familiar. Isso faz com que acabem reproduzindo esse comportamento e, infelizmente, adotando ações de extrema violência.

 

 

 

MidiaNews – Quais são os principais fatores que levam os adolescentes a se organizarem em grupos violentos dentro da escola?

 

Patrícia Carvalho – Essa questão de fascínio, mesmo, pelo mundo, pelas facilidades de se ter poder, impressões de ter poder. Isso acaba fazendo com que se organizem de uma forma mais ou menos violenta.

 

MidiaNews – Como o contexto familiar e comunitário influencia esse tipo de comportamento?

 

Patrícia Carvalho – Crianças expostas, por exemplo, à violência familiar ou a ambientes insalubres, de consumo de bebidas lícitas ou ilícitas, tendem a reproduzir comportamentos de agressividade e violência. Meninos passam a agir com violência contra meninas, a beber muito mais cedo – problema que assola não só Mato Grosso, mas todo o Brasil.

 

Se convivo em um ambiente dominado pelo crime, o meu aprendizado será sobre isso. O que precisamos fazer, enquanto sociedade, é ensinar. Se essas crianças aprendem a ter raiva e a ser agressivas, também podem aprender a ter amor ao próximo, a tratar com respeito, a ser gentis. Precisamos mudar nosso comportamento para que esses meninos também aprendam.

 

 

 

MidiaNews – Redes sociais e a cultura de registrar e compartilhar agressões potencializam essa violência?

 

Patrícia Carvalho – Extremamente. Já temos estudos que demonstram que a exposição exagerada às redes sociais prejudica não só emocionalmente, mas também todo o processo de aprendizagem da criança ou adolescente. Essa exposição e a necessidade de curtidas e visualizações acabam instigando ainda mais esses atos.

Quando casos extremos acontecem, a responsabilidade é de toda a sociedade, não só da Secretaria de Educação ou de Segurança

 

Em Mato Grosso, já temos orientação da Secretaria de Estado de Educação quanto ao uso de celulares dentro da escola, para que sejam utilizados somente com fins pedagógicos. Aí, entra o papel da família em casa: estabelecer regras de tempo de uso das telas e acompanhar essa utilização. Muitas vezes, a sociedade acredita que é melhor o filho estar dentro do quarto do que brincando na rua, mas não sabe “onde” o filho está indo dentro desse quarto. Com um celular, pode estar em diversos espaços, acessando conteúdos inadequados para idade.

 

MidiaNews – Essas agressões podem ser ainda mais violentas por conta dessa cultura de registrar e divulgá-las? 

 

Patrícia Carvalho –  Certamente. Quando esses atos de violência são expostos, você encontra pares para elogiam o que fez. A criança ou o adolescente, em desenvolvimento, pensa: “Fui elogiado, então vou repetir de forma mais violenta para receber mais elogios”. Aí, entra o papel da família e da sociedade. Quando a criança tira 8 e o pai diz: “Não fez mais do que a obrigação; devia ter tirado 10”, sem nunca elogiar, ao encontrar alguém que a elogie, mesmo por algo errado ou reprovável, ela pensa: “Encontrei meu espaço”. Todos queremos pertencer a grupos.

 

MidiaNews – Que efeitos imediatos e de longo prazo episódios como esses podem ter sobre a vida escolar, emocional e social das vítimas?

 

Patrícia Carvalho – No curto prazo, nesse episódio [de Alto Araguaia] as vítimas foram acolhidas, precisa mudar toda a rotina: às vezes mudar de unidade escolar, ter acompanhamento mais próximo da família, pode ficar mais assustada, desenvolver transtornos emocionais, traumas, medo de ir à escola.

 

Isso afeta diretamente o desenvolvimento do menor. A longo prazo, pode se tornar uma pessoa mais insegura, com mais medo e um processo de desenvolvimento mais lento.

 

 

 

MidiaNews – E sobre os agressores – como esses comportamentos podem marcar a trajetória desses jovens?

 

Patrícia Carvalho – Se não forem orientados e corrigidos, infelizmente podem adentrar a criminalidade.

 

Mas ainda estão em processo de formação e desenvolvimento, e é possível, com medidas de orientação e acompanhamento da família e das instituições, oferecer acolhimento. No caso das meninas de Alto Araguaia, elas estão em regime socioeducativo e terão acompanhamento para não perder o vínculo com a educação. A família, infelizmente, sofre com toda essa situação. E toda a sociedade também.

 

MidiaNews – Qual tem sido o papel do Núcleo de Mediação da Secretaria de Estado de Educação (Seduc) diante de casos de violência como esses?

 

Patrícia Carvalho – A Secretaria de Educação conta, hoje, com 112 professores mediadores e mais 109 equipes de psicólogos e assistentes sociais para atuar nas escolas frente aos reflexos da violência. Temos um calendário anual, desde o início das aulas: fevereiro é mês da saúde mental; março, de prevenção da violência contra as mulheres; abril, do combate ao bullying, entre outros.

 

O objetivo é organizar e gerenciar situações conflituosas dentro do ambiente escolar, estimular o diálogo e a reflexão. Se é possível ensinar a violência, também é possível ensinar a não violência. Muito se fala em promover a cultura da paz, mas, para isso, é preciso ensinar a não violência, a gerenciar conflitos e frustrações. Trabalhamos nesse sentido, com acolhimento e disseminação de práticas restaurativas.

 

 

 

MidiaNews – Quais estratégias concretas podem ser aplicadas no dia a dia das escolas para prevenir situações de violência?

 

Patrícia Carvalho – Desenvolvemos círculos de construção de paz e mediação de conflitos, ações com grêmios estudantis, campanhas pela não violência, atividades culturais, cursos, vídeos e palestras. Atuamos nesse contexto de apoio ao processo de ensino-aprendizagem. E a sociedade precisa participar, no contexto geral de violência que estamos vivendo, porque não é só a educação que vai conseguir, a gente precisa da família dentro do contexto escolar. 

 

MidiaNews – O que diferencia um caso de bullying de um de agressão física?

 

Patrícia Carvalho – O bullying acontece de forma sistemática, uma agressão corriqueira que pode evoluir para agressão física. Já a agressão física pode ser pontual: estou jogando bola, você erra um passo e leva uma cotovelada, por exemplo. O bullying se caracteriza pela repetição, geralmente motivada por uma característica [da vítima] que “não me agrada”. Temos, inclusive, legislação que prevê sanções para a prática do bullying, considerado crime.

 

Nós trabalhamos no contexto de orientação e conversa com os pais, para que estejam informados sobre o que acontece com seus filhos. Isso é de extrema importância. Não adianta dizer: “Coloquei meu filho na escola, agora a escola é que vai cuidar”. Não é bem assim. É um processo de colaboração, que precisa ser forte, porque somente a escola não dá conta de todo o leque de informações que a criança recebe fora da unidade escolar.

 

A família tem que estar em consonância com o que é apresentado dentro da escola, porque ela é uma extensão da educação. A primeira educação, de valores e comportamento, é dada dentro do contexto intrafamiliar.

 

 

 

MidiaNews – Existe diferença de impacto do bullying e da agressão física?

 

Patrícia Carvalho – Existe. A gente tem estudos que demonstram que uma pessoa vítima de bullying leva isso pra vida toda e é muito mais difícil de superar. São pessoas que ficam complexadas, porque: “Ah, eu tenho a perna fina, não vou usar short”; “Ah, olha, meu cabelo,  não gosto do meu cabelo assim, porque quando eu era criança, sempre tinha um coleguinha que falava isso ou aquilo”. São pessoas que levam isso para vida toda. 

 

Se a gente observar, as crianças se apegam com essa questão do bullying às características individuais de cada um. Mas são justamente essas características individuais de cada um que nos fazem únicos no mundo. A pessoa que sofre bullying fala: “Eu não gosto disso”, mas é justamente essa característica que a transforma em única. Isso é muito bom. Já pensou se todos nós fôssemos iguais? Coisa mais chata que seria o mundo.

  

MidiaNews – Quais costumam ser as principais motivações nesses casos de agressão física?

 

Patrícia Carvalho – Questões relacionadas a características físicas, de namoro… Infelizmente, as crianças estão iniciando relacionamentos cada vez mais cedo.

 

Questões raciais também têm grande impacto, assim como as de gênero, que ultimamente têm surgido bastante. Desde 2019, a Secretaria de Educação realiza levantamentos anuais para identificar os tipos de violência que impactam as escolas e desenvolver ações específicas.

 

Na última verificação, observamos uma redução significativa nos índices de bullying de 2024 para 2025, o que já foi uma vitória e mostra que as ações estão surtindo efeito.

 

 

 

MidiaNews – Gostaria de deixar uma mensagem final sobre esse tema? 

 

Patrícia Carvalho – Toda a sociedade tem que pensar no jovem, no adolescente no contexto de formação. Nós, adultos, temos que pensar estratégias para organizar esse gerenciamento de conflitos e também pensar em ações que não sejam extremamente punitivas. Porque quando a gente fala de uma cultura de paz, quando a gente está punindo, está reproduzindo o que a gente viveu nesse tempo todo. É o castigo, é o castigo, é o castigo, é o castigo.

 

E isso tem demonstrado que não está funcionando muito. Então, a gente tem que buscar o diálogo, dar espaço de escuta para esses adolescentes, para essas crianças e também para que eles tenham espaço para ouvirem.Temos que treiná-los para ter um momento de falar e um momento de ouvir também para que a gente consiga fluir. 

 

E a sociedade no contexto geral também tem que atuar no contexto de violência social que nós estamos vivendo, porque não é só a educação que vai conseguir. Nós temos desenvolvido inúmeras ações, mas a gente precisa principalmente da família dentro do contexto escolar, acompanhando seu filho e dialogando principalmente.

 

Assista a entrevista: 

 

 

 

FONTE: MIDIA NEWS

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